Democracia e Estado laico
José Francisco dos Santos
Filósofo e Professor
A votação acerca da interrupção da
gravidez de fetos anencéfalos, no Supremo Tribunal Federal, é um prato cheio
para a análise de uma série de questões que compõem nossa estrutura política e
jurídica, baseada no liberalismo e na democracia. Não vêm ao caso os argumentos
acerca da anencefalia, já sobejamente expostos de ambos os lados do debate. Mas
uma expressão, que serviu de base para o voto do ministro relator e que foi
figurinha carimbada nos inúmeros debates que se seguiram à votação, merece
atenção: “Estado laico”. A ideia provém dos filósofos iluministas e da sua mais
importante criação: a filosofia política liberal. Até a Revolução Francesa, no
final do século XVIII, religião e política sempre estiveram intimamente ligadas,
desde as épocas mais antigas e em todas as civilizações. Os reis absolutos da
Europa moderna eram ungidos e coroados pelos bispos católicos, seguindo uma
tradição que remonta ao rei Davi. Assim, os assuntos políticos, ou de Estado,
sofriam influência decisiva das ideias religiosas. Para acabar com esse modelo
político e permitir que a burguesia chegasse ao poder, a filosofia liberal
defende, então, o tal Estado laico. A palavra “laico” vem de “leigo”, que é o
nome que se dá aos fiéis de uma religião que não fazem parte do governo de sua
Igreja (bispos, presbíteros, diáconos, que chamamos de “clero”). O Estado moderno
era “clerical” e os iluministas queriam um Estado “laico”, isto é, desvinculado
da cúpula da Igreja. A ideia não é ruim, e é uma conquista importante da
filosofia política.
No entanto, essa noção está longe de ser
a coisa clara e límpida que parece ser nas frases de efeito em que normalmente
é utilizada. Se quisermos ser iluministas e liberais, não podemos nos esquecer
de duas outras ideias fundamentais do liberalismo político. Uma delas é a
divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário), conforme frisado pelo
filósofo francês Charles-Louis de
Secondatt, o Barão de Montesquieu. Segundo essa divisão, cabe aos deputados e
senadores, democraticamente eleitos, a função de fazer as leis, definir as
regras. Ao poder judiciário (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais
superiores) cabe aplicá-las aos casos concretos. Ora, porque os ministros do
Supremo Tribunal Federal definiram a regra da anencefalia? Porque, nesse tempo
todo em que o tema está sendo discutido, a Câmara e o Senado já não elaboraram
uma lei clara, expondo tudo o que pode e o que não pode, nos mínimos detalhes,
deixando ao STF apenas a tarefa de analisar sua constitucionalidade, se fosse o
caso? Afinal, os positivistas jurídicos, herdeiros da filosofia iluminista,
detestam esse “direito judiciário”, tão comum antes da Revolução Francesa, no
qual os juízes é que definiam as regras, sem controle do Estado nem legislação
clara. Para entender esse retrocesso, é preciso verificar a outra ideia
fundamental do liberalismo, aquela que afirma que “todo poder emana do povo”,
que o exerce por representantes eleitos, como reza nossa Constituição. Pois
bem, os ministros do STF não são eleitos pelo povo. São nomeados pelo
presidente da República e seus cargos estão garantidos até a aposentadoria. Fica
fácil para eles, então, decidirem os temas polêmicos, nos quais o “Estado
laico” se torna o chavão principal. O mesmo se deu, por exemplo, no caso das
uniões homoafetivas. Os deputados e senadores, que dependem do voto popular,
não querem submeter suas ideias “laicas” às urnas, pois o voto dos religiosos é
valioso. Então, eles deixam a bomba para o STF, que “legisla” em nome do Estado
laico, num flagrante desrespeito ao princípio liberal. Mas quem esse “Estado
laico” representa? O Estado não é o ente representativo da soberania do povo,
no qual se inclui a imensa maioria religiosa? Que parte aí é, então, laica? Vamos
combinar que aqui há, no mínimo, uma tremenda incoerência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário