terça-feira, 17 de abril de 2012

Artigo da semana


Democracia e Estado laico

José Francisco dos Santos
Filósofo e Professor

A votação acerca da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, no Supremo Tribunal Federal, é um prato cheio para a análise de uma série de questões que compõem nossa estrutura política e jurídica, baseada no liberalismo e na democracia. Não vêm ao caso os argumentos acerca da anencefalia, já sobejamente expostos de ambos os lados do debate. Mas uma expressão, que serviu de base para o voto do ministro relator e que foi figurinha carimbada nos inúmeros debates que se seguiram à votação, merece atenção: “Estado laico”. A ideia provém dos filósofos iluministas e da sua mais importante criação: a filosofia política liberal. Até a Revolução Francesa, no final do século XVIII, religião e política sempre estiveram intimamente ligadas, desde as épocas mais antigas e em todas as civilizações. Os reis absolutos da Europa moderna eram ungidos e coroados pelos bispos católicos, seguindo uma tradição que remonta ao rei Davi. Assim, os assuntos políticos, ou de Estado, sofriam influência decisiva das ideias religiosas. Para acabar com esse modelo político e permitir que a burguesia chegasse ao poder, a filosofia liberal defende, então, o tal Estado laico. A palavra “laico” vem de “leigo”, que é o nome que se dá aos fiéis de uma religião que não fazem parte do governo de sua Igreja (bispos, presbíteros, diáconos, que chamamos de “clero”). O Estado moderno era “clerical” e os iluministas queriam um Estado “laico”, isto é, desvinculado da cúpula da Igreja. A ideia não é ruim, e é uma conquista importante da filosofia política.
No entanto, essa noção está longe de ser a coisa clara e límpida que parece ser nas frases de efeito em que normalmente é utilizada. Se quisermos ser iluministas e liberais, não podemos nos esquecer de duas outras ideias fundamentais do liberalismo político. Uma delas é a divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário), conforme frisado pelo filósofo francês Charles-Louis de Secondatt, o Barão de Montesquieu. Segundo essa divisão, cabe aos deputados e senadores, democraticamente eleitos, a função de fazer as leis, definir as regras. Ao poder judiciário (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores) cabe aplicá-las aos casos concretos. Ora, porque os ministros do Supremo Tribunal Federal definiram a regra da anencefalia? Porque, nesse tempo todo em que o tema está sendo discutido, a Câmara e o Senado já não elaboraram uma lei clara, expondo tudo o que pode e o que não pode, nos mínimos detalhes, deixando ao STF apenas a tarefa de analisar sua constitucionalidade, se fosse o caso? Afinal, os positivistas jurídicos, herdeiros da filosofia iluminista, detestam esse “direito judiciário”, tão comum antes da Revolução Francesa, no qual os juízes é que definiam as regras, sem controle do Estado nem legislação clara. Para entender esse retrocesso, é preciso verificar a outra ideia fundamental do liberalismo, aquela que afirma que “todo poder emana do povo”, que o exerce por representantes eleitos, como reza nossa Constituição. Pois bem, os ministros do STF não são eleitos pelo povo. São nomeados pelo presidente da República e seus cargos estão garantidos até a aposentadoria. Fica fácil para eles, então, decidirem os temas polêmicos, nos quais o “Estado laico” se torna o chavão principal. O mesmo se deu, por exemplo, no caso das uniões homoafetivas. Os deputados e senadores, que dependem do voto popular, não querem submeter suas ideias “laicas” às urnas, pois o voto dos religiosos é valioso. Então, eles deixam a bomba para o STF, que “legisla” em nome do Estado laico, num flagrante desrespeito ao princípio liberal. Mas quem esse “Estado laico” representa? O Estado não é o ente representativo da soberania do povo, no qual se inclui a imensa maioria religiosa? Que parte aí é, então, laica? Vamos combinar que aqui há, no mínimo, uma tremenda incoerência.

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